Ontem (11), a Hutukara Associação Yanomami e a Associação Wanasseduume Ye’kwana publicaram, apoiados pelo Instituto Sociambiental (ISA), o relatório Yanomami sob ataque. O documento apontou que o garimpo ilegal cresceu 46% na reserva indígena dos Yanomami, só no ano passado, em relação a 2020. O principal objetivo do relatório foi descrever a evolução desse garimpo no Território Indígena (TI), mas foi possível também evidenciar outras violações dos direitos humanos na comunidade, inclusive as que atingem crianças e adolescentes.
Em 2018, a área total destruída pelo garimpo somava 1.200 hectares e concentrava-se em duas principais coberturas: na calha do rio Uraricoera e na calha do rio Mucajaí, em Roraima. Essa configuração mudou e estendeu-se a outros pontos como: rio Parima, rio Couto Magalhães, rio Apiaú etc. Agora a extensão dos rastros de destruição do garimpo soma 3.272 hectares, sendo o maior da história do território indígena desde 1992 quando foi demarcado. A situação de vulnerabilidade social dos Yanomami por conta do garimpo não é só essa, o relatório revela casos de assédio e estupro de crianças por garimpeiros da região.
Moradores dos arredores do rio Apiaú relataram à Hutakara que a abordagem dos garimpeiros muitas vezes inicia com o processo de alcoolização nas comunidades indígenas. Os garimpeiros oferecem aos indígenas bebidas industrializadas e drogas em excesso. A denúncia dá conta que uma menina foi estuprada depois que seu povo ficou bêbado e inerte, ocasionando ao garimpeiro a oportunidade perfeita para a violência sexual.
Em outra denúncia, um garimpeiro propõe a troca de mercadorias por “casamento” arranjado com adolescente yanomami. Esse e tantos outros casos são relatados, inclusive, por pesquisadores que atuam nessas comunidades indígenas. Os impactos do garimpo não só poluem os rios, desmatam a floresta e afugentam os animais para a caça como também aprofundam a fome nessas comunidades que ficam à mercê, muitas vezes, de um esquema de exploração e barganha.
Trechos de relatos que um pesquisador descreve sobre a situação:
“Após os Yanomami solicitarem comida, os garimpeiros rebatem sempre. (…) ‘Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!’.
‘Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!’.
Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida.”
O relatório menciona também que muitos estupros ocorrem com adolescentes que ainda vivem a menarca, a primeira menstruação. Além disso, essa violência sexual acarreta a transmissão de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e lesões no colo do útero. Em 2020, três meninas yanomami que tinham por volta de 13 anos morreram vítimas dessas doenças.
Os impactos do garimpo na vida e saúde de crianças e adolescentes yanomami não para por aí. Doenças infectocontagiosas, principalmente a malária, fazem parte desse cenário, pois essa vulnerabilidade está diretamente ligada aos rios e igarapés poluídos e a aproximação de não indígenas nas comunidades.
Depois de 2017, os Distritos Sanitários Especiais Yanomami registraram alta incidência de casos de malária, o destaque é para o Polo Palimiu que registrou mais de 1,8 mil casos no segundo semestre de 2020 ao mesmo tempo que o avanço da pandemia da covid-19 ocorria no território indígena.
Como o documento faz lembrar, a primeira vítima indígena da covid-19 também se tratava de um adolescente de apenas 15 anos, morador da comunidade situada às margens do rio Uraricoera. Rio que faz parte da Bacia hidrográfica do Uraricoera, a segunda mais impactada no quesito destruição por garimpo. De acordo com os demonstrativos do relatório, são 150km do leito do médio curso do rio poluído. Todo esse cenário de extrema vulnerabilidade que o garimpo provoca nas comunidades indígenas aceleram diversas situações de tragédia local.
Obras da Companhia de Jesus na Amazônia que realizam trabalho com crianças e adolescentes se manifestaram sobre o relatório:
“Nos causa revolta os fatos expostos no Relatório Yanomami sob ataque e nos enche de perplexidade e indignação as situações de abuso e violação a que crianças e adolescentes indígenas estão sendo submetidas pelas mãos e comportamentos abusadores e perversos de garimpeiros e não indígenas que, além de explorarem e violentarem os territórios, também violentam os corpos, a cultura e a infância e adolescência destes povos. Em total repúdio, o Centro Alternativo de Cultura se coloca como voz e instrumento de defesa da infância e adolescência indígena, se unindo a outras vozes para denunciar tais violações e defender os territórios indígenas”, disse Juscélio Pantoja, coordenador pedagógico do Centro Alternativo de Cultura.
Para a Fundação Fé Alegria Amazonas não foi diferente. Segundo Lidiane Rodrigues, assistente social da Instituição, a situação relatada é inaceitável. “A Fundação Fé e Alegria Amazonas se posiciona veemente contra o contexto de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes praticados no território Yanomami. Somos contrários a toda e qualquer forma de violação contra a dignidade e os direitos dos povos tradicionais. E, ainda, assumimos o compromisso de defesa e garantia dos direitos da criança e do adolescente, preconizando sempre a luta pela sua dignidade”.