“Sai de tua terra, do meio de teus parentes, da casa de teu pai, e vai para a terra que eu vou te mostrar” (Gn 12,1).
Deus envia seus amigos para terras distantes. Foi assim com Abraão que partiu para a terra prometida. Foi assim também com Moisés que, mesmo não adentrando à terra, avistou-a ao longe e, mesmo sem ter tocado com seus pés, cumpriu a missão a qual Deus lhe confiava. Apresentando-se como o Divino Peregrino a caminho de Emaús, o próprio Senhor Ressuscitado se aproxima daqueles que estão a caminho. Assim, provoca o ardor no coração e se revela como alimento de quem está a caminho. Confiando sua missão aos apóstolos, o próprio Jesus ordena: “Ide por todo mundo e anunciai o Evangelho”.
Primeiramente, gostaria de partilhar com vocês minhas origens. Nasci em Campo Largo, uma pequena cidade que fica nas redondezas de Curitiba (PR). Sou o segundo filho de uma família de dez irmãos. Meu pai, Caetano, por longos anos foi operário nas fábricas de porcelanas. Era também ministro da Palavra. Morreu muito cedo, tinha somente 53 anos. Minha mãe, dona Maria de Lourdes, sempre se dedicou aos trabalhos domésticos e a reza do terço com as famílias. Em outubro, ela completou 82 anos. Confesso que minha família era bastante tradicional.
Na minha infância e juventude, nunca passou pela minha cabeça ser um missionário e muito menos que um dia iria morar na Amazônia. Lembro que quando era adolescente, meu pai todas as noites escutava num radinho de pilha o programa a Voz do Brasil, pois minha família não tinha televisão. Um dos assuntos que era noticiado quase que diariamente era o da construção da Transamazônica ou Rodovia Transamazônica (BR-230). Como menino pobre, não possuía nenhum conhecimento geográfico sobre a Amazônia Legal. Mas, O que se passava para os ouvintes era que os militares estavam levando o progresso e o desenvolvimento para a Amazônia, dando subsídios para as famílias e concedendo grandes extensões de terra para grandes empresários irem povoarem a Amazônia. Já naquela época, não levavam em consideração os nossos Povos Originárias que, aliás, já povoam a região há mais de 11 mil anos. Essa propaganda radiofônica tinha por finalidade atrair as populações rurais, apresentando a Amazônia como um vazio demográfico: “são terras sem homens, para homens sem-terra”.
Minha primeira experiência de morar na Amazônia, foi no período de 1996. Fiz um ano de Magistério em Porto Velho (RO) e depois que terminei a teologia voltei novamente como diácono. Já ordenado, trabalhei mais de nove anos (2000 – 2009) como vigário da Paróquia Santa Luzia, localizada num bairro periférico de Porto Velho. Ali, também trabalhei junto a equipe de Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho… Foram longos anos de visitas aos presídios. Nesse período, devido as inúmeras chacinas ocorridas no Presídio Urso Branco, a cidade de Porto Velho ocupou o noticiário nacional e internacional e o nosso trabalho se intensificou. Juntamente com a Justiça Global, encaminhamos uma denúncia à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), denunciando as inúmeras chacinas que vinham acontecendo naquele lugar. Depois dessa denúncia, o Brasil passou a ser monitorado por esse tribunal. Foi uma pequena vitória que alcançamos junto a um organismo internacional.
Em maio de 2012, fui enviado em missão para trabalhar no Centro de Direitos Humanos da Arquidiocese de Manaus e colaborar na Área Missionária Santa Margarida de Cortona, localizada em bairro periférico. Devido as dificuldades de conseguir financiamento para os projetos, o centro fechou em 2013. Permaneci trabalhando na Área Missionária até setembro de 2015 e depois fui enviado para a Paróquia Sagrada Família no Marabá (PA). Foram bons tempos de serviço às comunidades, acompanhando e caminhando junto com elas. Em janeiro de 2017, voltei à Manaus para ajudar a reconfigurar o Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), onde permaneci até o último dia 31 de outubro como coordenador.
Vale dizer que nesses mais de 20 anos em missão pelo território amazônico eu tenho vivido um processo permanente de conversão, de rever meus valores, rever minha própria vida. Tenho experimentado um chamado de viver uma vida mais simples e humilde.
Na medida que fui conhecendo o bioma Amazônia, convivendo com os povos amazônicos, fui tomando consciência de qual seria nossa missão nesse território, nesse bioma tão cobiçado e disputado: “ela deve anunciar o Reino de Deus e combater os avanços do modelo neoextrativista de desenvolvimento do agronegócio, da mineração, das hidroelétricas, da posse de terra e do domínio das águas, em prol do modelo de desenvolvimento que pressupõe sustentabilidade, respeitando e conservando a vida e a dignidade humana de quem vive na Amazônia”, como consta em muitas das nossas reflexões e documentos norteadores dos Jesuítas na Amazônia. Além disso, comungamos com aquilo que afirma o Papa Francisco: “somos chamados a superar uma economia que mata para uma economia que gera vida.”
Acredito que temos de ter os pés, as mãos e o coração plantados nessa terra. A quarta Preferência Apostólica Universal da Companhia de Jesus – colaborar com o cuidado da Casa Comum – é um convite à conversão. Para nós, jesuítas, e companheiros e companheiras na missão, começa com a mudança dos hábitos de vida propostos por uma estrutura econômica e cultural fundada no consumo e na produção irracional de bens. A palavra do Papa Francisco nos anima em direção contrária a esse modelo: “É muito nobre assumir o dever de cuidar da Criação com pequenas ações cotidianas, e é uma coisa maravilhosa que a educação seja capaz de motivá-las a ponto de moldar um estilo de vida.”
Nesse sentido, a Carta Encíclica Laudato Si foi uma benção! O Papa Francisco presenteou à toda humanidade com esse documento que caiu como uma fruta madura no jardim da Igreja Católica e no mundo. E, sem dúvidas, recebeu raios de sol, ventos, águas e tempestades que contribuíram para esse amadurecimento. Afinal, muitos foram os que colaboraram com o compêndio socioecológico das reflexões da Encíclica junto com o Papa Francisco para que no dia 24 de maio de 2015, na festa de Pentecostes, ele o tornar-se público.
Tempos depois, não podemos esquecer, o Sínodo da Amazônia nasce da Encíclica Laudato Si’, segundo afirma o Papa Francisco. Do Sínodo, brota a Exortação Apostólica Querida Amazônia que também está intimamente unida ao Documento Final do Sínodo que foi construído a partir de muita escuta com os povos amazônicos e a Igreja da Amazônia. Nesses documentos, o que não falta é o sentido do que é ser missionário na Amazônia. Os quatro sonhos que aparecem na Querida Amazônia e as cinco conversões que aparecem no Documento Final do Sínodo são pistas que todo aquele que quer viver plenamente o “Amazonizar-se” deve ter em seus horizontes de vida e missão nesse chão.
Nesse sentido, há também um imenso desafio que temos pela frente a vencer: aprofundar a relação entre movimentos sociais, pastorais sociais, Rede Eclesial Pan-Amazônica e, espiritualidade e ética ecológica integral na perspectiva dos dois documentos do Sínodo para Amazônia, já supracitados. Isso vai exigir de nós a necessária conversão pessoal, comunitária e institucional para avançar para águas mais profundas. Inclusive, aproveito para recordar que foi de grande consolação e aprendizado para mim a participação no evento “Amazônia: Nossa Casa Comum”, que aconteceu em Roma, em período simultâneo ao Sínodo (2019). Ali, esse desafio já se apresentava e foi bastante ressonante entre aqueles com quem partilhava o pão e a utopia.
Mas, apesar desse coração na Amazônia, tanto na vida dos discípulos como na vida dos padres da atualidade há momento de chegar e de partir. No último dia 1 de novembro, comecei a jornada do peregrino que sou e em obediência a minha Congregação que me pediu para partir para outras terras, para o outro lado da margem do mar da vida missionária. No entanto, fica eternizada em minha memória os longos anos vividos no território Amazônico. Obrigado Senhor pela graça que me concedestes de permanecer nessas terras e com ela aprender o caminho do serviço sacerdotal e missionário. Caminho de cruz, caminho de alegria, caminho que agora me conduz para Russas (CE).
Aprendi a amar a Amazônia e continuarei amando os povos com os quais convivi por longos anos. Foi um longo processo de conversão e tenho certeza que tenho ainda muito a me converter. Muitos abriram as portas de suas casas e seus corações para receber benção, partilha, amizade e por isso creio, mais do que nunca, que a evangelização passa por sinceros laços de amizade e que é fundamental redescobrirmos Jesus em nossa vida, bem como o lugar que nossa amizade com Ele ocupa em nossa conversão pessoal e comunitária. Foi um tempo de alegria e muito aprendizado! Sentirei muito falta do tambaqui assado e do açaí, e de tantas frutas tão saborosas que só no chão amazônico se encontram. A Amazônia e seus povos marcaram a minha vida!