Povos indígenas em busca da Terra sem males: retomar e indigenizar o Brasil

Nestes tempos obscuros da história da humanidade, uma voz brada das profundezas como um alerta que interpela a cada um e a cada uma: “onde está o teu irmão?”. Onde estão os povos Xipaya e Munduruku vítimas do garimpo devastador que destrói suas terras, poluem seus rios e semeiam o terror em suas comunidades? Onde está o povo Guarani-Kaiowá duramente perseguido e martirizado pelo voraz agronegócio? Onde está o povo Warao forçado a migrar da Venezuela e agora tratado com truculência pelas autoridades migratórias nacionais e internacionais? O sangue indígena clama do solo ultrajado e vilipendiado há séculos pelos “comedores de floresta”, como denuncia o grande xamã Davi Kopenawa! 

Sangue esse que continua a jorrar ininterrupta e escandalosamente sem qualquer pudor em plena luz do dia. Enquanto uma minoria criminosa e violenta lucra sobre o extermínio indígena, uma maioria apática e silenciosa torna-se conivente com a barbárie perpetrada em nome da civilização. As tentativas de respostas são balbuciadas para aplacar a consciência do mundo urbano cosmopolita: “não sei. Acaso sou guarda do meu irmão?”. Até quando a indiferença hipócrita tranquilizará os corações letrados do centro político, financeiro e cultural do país?

Naquele que provavelmente será o último ano do atual governo, as forças diabólicas, que ocupam os bastidores do poder central, manobram sorrateiramente para “passar a boiada” e aprovar uma pauta da morte. Depois de décadas de avanço na consolidação de uma legislação ambiental mínima, com o advento da Constituição Cidadã, os retrocessos verificados nos recentes anos são estarrecedores. 

Há muito se passou de mera impressão, de que o mandatário-mor e seus asseclas trabalham diuturnamente para desfazer tal proteção jurídica construída após longa luta dos movimentos ambientalistas e indígenas, para uma desconcertante e declarada certeza. Infelizmente, na lista de prioridades apresentadas pelo governo federal ao Congresso em 2022 existem vários projetos de lei que contrariam o espírito do art. 225 da Constituição Federal que estabelece o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Ao invés de fiscalizar o crescente desmatamento nas Terras Indígenas, retirar os mais de 20 mil garimpeiros ilegais no território Yanomami ou cumprir seu dever constitucional, previsto no art. 231, de demarcar as inúmeras terras indígenas pendentes, a administração federal almeja aprovar, entre outros, o projeto de lei 191/2020 que regulamenta a exploração mineral, hídrica e de petróleo em terras indígenas. Lamentavelmente, o interesse exclusivo do governo é econômico em detrimento da preservação do meio ambiente e do bem viver das comunidades indígenas. 

Uma vez tornada lei, essa proposta será catastrófica não só ecologicamente, mas também para os povos originários. Os impactos negativos serão imensuráveis e irreversíveis ao modo de vida tradicional dos habitantes desses territórios, porque os empreendimentos chegarão com toda a força do capital especulativo, ávido pelo lucro acima de tudo e acima de todos. A mentalidade consumista e predatória se impregnará com intensidade destrutiva nas culturas desses povos e sua relação ancestral com a Mãe Terra será ferida de morte. Antes desse cenário desolador, provavelmente, haverá um processo de divisões e disputas internas com a acelerada perda de identidade. 

Tudo isso em um momento em que a afirmação ufanista do cristianismo hegemônico no Brasil nunca foi tão exaltada, na história recente. Mas a propósito, parafraseando o jesuíta chileno Santo Alberto Hurtado, SJ: o Brasil é realmente um país cristão? Qual visão do cristianismo tem sido propagada nos cultos e nos programas televisivos? Certamente não o mesmo afirmado pelo Concílio Vaticano II e encampado pelo Papa Francisco com profecia e coragem. 

O pontífice na Encíclica Fratelli Tutti convida a deixar uma visão de “sócios”, associada a interesses pessoais, para abraçar a amizade social e a fraternidade universal, indicada pela proximidade, vivida na parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37). Afinal, esse “amor social impele-nos a pensar em grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade”, aponta Francisco no n. 231 da Laudato Si.

A pessoa humana, juntamente com o cuidado da Casa Comum, deve estar no centro das decisões de quaisquer sistemas político-econômico. A perspectiva da ecologia integral rompe com uma visão instrumentalista e utilitária do ser humano e da natureza. Afinal, tudo faz parte da Criação. E como dons de Deus devem ser contemplados e não simplesmente devorados em uma lógica consumista e egoísta. Nesse sentido advertiu o papa jesuíta (LS, n. 237): 

“a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada o mais importante: o seu significado. Na nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade. Trata-se doutra maneira de agir, que pertence à nossa essência. Assim, a ação humana é preservada não só do ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada e da consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. (…) O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros”.

Da mesma forma, a cosmovisão dos povos indígenas não passa pela objetificação dos recursos naturais, muito menos pelo princípio da maximização dos lucros. Então, o que querem os habitantes originários dessas terras? Diferentemente da sociedade brasileira que parece à deriva, eles sabem o que querem e o disseram com firmeza no Documento Final do 18º Acampamento Terra Livre, em Brasília: 

“Precisamos interromper esses processos de destruição e morte. Nossa luta é por nossos Povos, sim, mas também pelo futuro de todos e todas as brasileiras e pela humanidade inteira! Lutamos por um projeto civilizatório de país e de mundo. Um projeto baseado nos princípios do respeito à democracia, aos direitos humanos, à justiça, ao cuidado com o meio ambiente e com a Mãe Natureza; um projeto que respeite a diversidade étnica e cultural do país do qual fazemos parte, com mais de 305 povos diferentes e 284 línguas indígenas, sem racismo, preconceitos e discriminações de nenhum tipo”. 

Conscientes dos graves perigos que rondam a sobrevivência de seus povos e territórios, umbilicalmente em comunhão, os indígenas não se curvaram à mentalidade acumulativa do capitalismo. Firmados na sabedoria de sua ancestralidade teimam em resistir com paciência e perseverança. Mesmo após séculos de crueldades e agressões brutais, são exemplos luminosos de uma luta não-violenta, que não responde na mesma medida de seus algozes.

Com a força de suas lideranças, capitaneadas pelas mulheres e pela juventude, os povos indígenas avançam sobre a política institucional. Já não basta apenas que o barulho de seus maracás seja ouvido pela nova-sempre-velha elite política. Depois de elegerem a primeira deputada federal indígena, Joênia Wapichana, advogada oriunda do movimento indígena de Roraima, marcham confiantes para demarcar as urnas nestas eleições. Convencidos da importância de ocupar espaços a partir de suas raízes fincadas nos territórios, querem ousadamente “aldear a política”. 

Uma evidência se clarifica no horizonte: a necessidade de uma nova política que recupere realmente a verdadeira tradicionalidade e o bem viver. Como diz o Papa na sua encíclica verde, “precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os vários aspectos da crise”. Ademais, a nova-sempre-velha política está falida, sendo “responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas”. Portanto, “uma estratégia de mudança real exige repensar a totalidade dos processos, pois não basta incluir considerações ecológicas superficiais enquanto não se puser em discussão a lógica subjacente à cultura atual”. 

Nada melhor do que os povos tradicionais que, com mais de cinco séculos de luta e resistência, já possuem experiência suficiente para “indigenizar” o Brasil novamente. Este é o tempo favorável para que essa retomada aconteça! Com a força dos ancestrais e a espiritualidade das águas e das florestas, o Brasil do Cocar deve se preparar para oferecer ao Brasil da Coroa a promessa da Terra sem males. Lugar onde o ser humano vive em harmonia com a Mãe Terra, onde a farinha e o beiju são abundantes e ninguém passa fome. Terra que acolhe a alegria de povos que cantam e dançam parichara na festa sem fim, como prenúncio de um Brasil mais justo e igualitário, onde todos tem voz, vez e lugar.

 

 

*Os artigos publicados neste espaço são de responsabilidade do autor e nem sempre refletem a linha editorial da PAAM – Jesuítas Brasil.

INFORMAÇÕES DE CONTATO

Gabriel Vilardi, SJ

Jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP – São Paulo/SP) e em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE – Belo Horizonte/MG). Membro da Equipe Indigenista dos Jesuítas do Brasil, vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região da Serra da Lua, em Roraima.

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