Para os cristãos de boa vontade a Quaresma é um divisor de águas, por ser um período em que o batizado busca no seu íntimo encontrar/confirmar a vontade de Deus. Neste sentido, se torna importante sublinhar que este caminho de deserto, próprio da dinâmica deste Tempo Litúrgico provoca a todos um desejo profundo de conversão. De passar de um estilo de vida desordenado e distraído a um estilo semelhante ao de Jesus e de sua mensagem, em fazer o bem.
Por outro lado, a Campanha da Fraternidade 2023 assume o tema “Fraternidade e fome” e o lema “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). Estas referências coincidem com a provocação de Jesus escrita nos Evangelhos sobre a qualidade da vida humana. Esta se torna tangível de maneira especial na realidade dos pobres que sobrevivem em meio a uma sociedade desatenta aos sinais dos tempos.
Nesta perspectiva, se reconhece na prática evangélica enquanto exercício primeiro que o dar de comer a quem tem fome é ação concreta do cristão, isto é, longe de ser reduzida a uma compreensão assistencialista, possui um sentido perene de misericórdia com os famintos. Assim, a prática cristã como exercício primeiro de fé contribui ao pensamento teológico como exercício segundo, já que ilumina a finalidade deste agir humano como necessário em realidades prementes, pois quem tem fome tem fome AGORA.
Vale insistir que, Jesus traduz sua mensagem com sua própria ação “encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes” (Mt 14,15). Sua Palavra não é apenas teoria, mas prática. Quando o Mestre provoca seus discípulos a ação, Ele mostra que mesmo em situações adversas de pobreza e necessidades é possível ser generosos e solidários uns com os outros como se realiza na multiplicação dos pães.
Esta dinâmica de partilhar o pouco que se tem é próprio da realidade dos pobres que são peritos na luta diária pela sobrevivência. Esta preferência de Jesus pelos fracos e vulneráveis é retomada, refletida na atualidade com a proposta de uma “ecologia da vida cotidiana” presente na Carta Encíclica do Papa Francisco Laudato Si. “[…] É louvável a ecologia humana que os pobres conseguem desenvolver, no meio de tantas limitações […][1], a qual mostra ser urgente superar o egoísmo, a indiferença e a marginalidade/abismo social para se viver realmente uma sociedade fraterna e digna.
Nessa ênfase, a Campanha da Fraternidade deste ano que inicia com a quaresma é um grito, um clamor de socorro que busca despertar os seres humanos adormecidos. Ela abre espaço para seguir esta reflexão por meio da espiritualidade ecológica que é vital dentro da Preferência Apostólica Amazônia da Companhia de Jesus. No entanto, este texto pretende reforçar e limitar a discussão na proposta quaresmal da Campanha da Fraternidade de interpelar a todos a pensar e conhecer a difícil realidade daqueles vivem a partir das sobras, em completa indignidade, os descartados, aqueles que não produzem; e que ocupam um lugar de constante sofrimento indesejado por todos.
Finalmente, como escreve o Papa Francisco ao referir-se à opção preferencial pelos mais pobres: “esta opção é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum”[2]. Portanto, para concretizar este projeto de Reino de Deus é necessário ressignificar o sentido da vocação cristã, o chamado a santidade que se traduz mesmo de modo contingente no profundo desejo e disposição do discípulo de seguir animado neste serviço fiel de colaborar na missão de Cristo; e assim agir frente ao pedido do Mestre: “dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16).
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Escuela Bíblica de Jerusalén. Biblia de Jerusalén. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2009.
Francisco, Carta Encíclica “Laudato si” sobre el cuidado de la casa común. Sao Paulo, SP: Paulus, 2015.
[1] Francisco, Laudato Sí, 91.
[2] Francisco, Laudato Sí, 95.